"Na intensa vida política da Argentina, reiniciou-se o debate teórico-político sobre a sua crise prolongada".
O artigo é de Cláudio Katz, professor de economia na Universidad Buenos Aires, autor, entre outros livros, de Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo (Expressão Popular), publicado por A Terra é Redonda, 15-08-2023. A tradução é de Fernando Lima das Neves.
A Argentina aproxima-se dos 40 anos do fim da ditadura, em seu contexto habitual de perturbação econômica e de incerteza política. As turbulências financeiras e cambiais antecipam outro duro ajuste do nível de vida popular, mas num cenário de florescentes negócios futuros.
A gestão desta intrincada combinação ficará nas mãos do próximo presidente, que sairá de uma intensa sequência de eleições provinciais, primárias e gerais. A dura disputa por este troféu contrasta com o pouco interesse que desperta entre a maioria da população. O reduzido impacto que as urnas demonstraram sobre o rumo do país explica essa retração da cidadania. Não é indiferente quem será o próximo presidente, mas a prolongada crise argentina ultrapassa o que foi feito por um ou outro governo.
A fratura social é o drama mais visível e cotidiano. À expansão da pobreza e da precarização juntam-se a degradação da educação, o crescente déficit habitacional, a demolição do sistema de saúde e a emigração dos profissionais mais qualificados. Esta degradação tende a naturalizar-se diante da diminuição da renda. Cada crise coloca o cenário social num nível inferior ao do contexto precedente. A expectativa ingênua de 1983 (“com a democracia se come, se educa e se cura”) foi desfeita. A consolidação do regime constitucional não alterou a permanência da trajetória descendente da economia.
As explicações mais inconsistentes atribuem este retrocesso às idiossincrasias dos argentinos, como se os habitantes do país compartilhassem um gene autodestrutivo. As interpretações de direita evitam essa nebulosidade e atacam os despossuídos para eximir de culpa os poderosos. Afirmam que os pobres não querem trabalhar porque perderam a cultura do trabalho. Mas esta afirmação contrasta com a diminuição do desemprego, em cada retomada do nível de atividade.
A regressão produtiva obedece à falta de emprego genuíno e não ao comportamento das vítimas dessa falência. Os reacionários atacam os planos sociais, como se fossem uma escolha e não um recurso forçado de subsistência. Denunciam as mulheres que sustentam seus lares, com a absurda acusação de “engravidar para receber o benefício por filho”. Exaltam genericamente a educação como solução mágica, omitindo que o ensino não pode contrapor a ausência de postos de trabalho.
Os especialistas em depreciar os humildes absolvem as classes dominantes. Elogiam a criatividade dos capitalistas, a astúcia dos banqueiros e a audácia dos empreendedores. Com estes elogios, ocultam que os principais responsáveis pelo rumo que toma o país são os administradores do poder. Os neoliberais atribuem o declínio econômico ao elevado gasto público, ignorando que estas despesas não ultrapassam a média internacional ou regional. Com este desconhecimento, atacam o emprego e as empresas públicas, para não falar do sistema fiscal regressivo que vigora no país.
Também desconhecem que o desequilíbrio fiscal é uma consequência do auxílio aos abastados. Todos os governos afinaram estes mecanismos de subsídio, com resgates de falências, seguros cambiais, estatização de empresas falidas ou conversão de dívidas privadas em obrigações públicas. A direita centra o problema argentino no “populismo”, esquecendo que, nos últimos 40 anos, não predominaram a demagogia social e as concessões aos despossuídos, mas o apoio estatal aos principais grupos capitalistas.
O grande paradoxo deste socorro reside no fato de que seus beneficiários condenam os políticos que fornecem esses fundos. Um recente questionador da “casta”, o milionário Eurnekian, expandiu sua empresa têxtil com créditos de bancos estatais, lucrou com meios de comunicação regulados pelo Estado, consolidou-se com a privatização de aeroportos e fez fortuna em sociedade com a YPF.
Esta mesma duplicidade é exibida por Galperín, Rocca, Magnetto, Pérez Companc, Fortabat, Macri e todos os papas do empresariado. A direita é muito condescendente com a elite que transferiu suas empresas para paraísos fiscais para não pagar impostos. Mas é implacável com os trabalhadores que buscam manter seus rendimentos. Apresenta qualquer aspiração popular como um entrave ao distributivismo, ao consumo insustentável ou à “extorsão salarial”.
Maurício Macri, ex-presidente argentino. (Foto: Elza Fiuza | Agência Brasil)
A direita considera que a Argentina decaiu por seu divórcio do Ocidente. Imaginava o país como um afilhado de Paris (e agora de Miami), casualmente localizado na geografia latino-americana. Com esta visão, idealizam o passado latifundiário e embelezam a oligarquia que lucrou com a exploração dos arrendatários e dos assalariados. Omitem também que este modelo exaltado lançou as sementes dos desequilíbrios duradouros posteriores.
As críticas heterodoxas ao neoliberalismo têm desmascarado muitas fábulas sobre a economia argentina. Mas essas críticas ressaltam com frequência mais os efeitos do que as causas da regressão nacional.
Várias visões marxistas apontaram corretamente que as desgraças da Argentina não são exclusividades nacionais. São infortúnios gerados por um sistema capitalista que afeta as maiorias populares em todo o planeta. Esta observação é muito útil, mas não esclarece porque os desequilíbrios locais são superiores aos de economias semelhantes.
Em poucos países verificam-se convulsões com o alcance e a periodicidade que abalam nosso país. Também não houve muitas degradações comparáveis às sofridas por uma nação que, em cinco décadas, aumentou seu percentual de pobres de 3% para 40% da população. Este retrocesso avassalador coincide com o fracasso de todos os modelos experimentados para inverter este declínio. A consternação gerada por este resultado explica o ceticismo, a descrença e o pragmatismo de muitos pensadores. Mas esta atitude não nos permite compreender o que está acontecendo.
O ponto de partida para este esclarecimento é reconhecer a localização objetiva da Argentina como economia mediana no universo latino-americano. Dentro desta configuração subdesenvolvida, ficou situada num degrau mais baixo da semiperiferia.
Como outros países dependentes, emergiu consolidando sua especialização primária. Mas tinha uma renda fundiária elevada, num contexto de baixa população autóctone para explorá-la. Esta ausência foi compensada com um grande fluxo de imigração, que criou um “celeiro do mundo”, fornecedor de carne para as metrópoles.
Na segunda metade do século XX, perdeu estas vantagens de exportação para novos concorrentes, mas contrapôs este deslocamento com tecnologias avançadas que aumentaram a produtividade agrícola. Este modelo extrativista de pools e de semeadura direta reproduz uma especialização em insumos básicos que expulsa mão de obra. Em vez de absorver imigrantes e criar pequenos agricultores, há décadas alimenta a população de trabalhadores informais nas cidades.
A Argentina teve uma industrialização precoce, com recursos que o Estado reciclou da renda agrária. Mas nunca conseguiu formar uma estrutura industrial autossustentável e competitiva. O setor não gera as divisas necessárias para sua própria continuidade. Depende das importações, que o Estado garante através de subsídios indiretos, para uma atividade com elevada concentração em poucos setores, grande predomínio estrangeiro e baixa integração de componentes locais.
Estes ramos industriais foram muito afetados pelos novos parâmetros de rentabilidade impostos pela globalização neoliberal. A mesma dissociação teve um impacto em outros países afetados pela transferência de investimentos para o continente asiático. Mas as adversidades da Argentina são maiores. A economia que inaugurou o modelo de substituição de importações não foi capaz de superar as consequências dessa antecipação.
O país ficou mais deslocado que seus pares em relação ao novo padrão de montagens e cadeias de valor impostos pelas empresas transnacionais. Não tem as compensações que o México tem pela proximidade com o mercado estadunidense, nem conta com a dimensão do Brasil para ampliar a escala de sua produção.
Os desequilíbrios estruturais obedecem ao desperdício da renda que não foi utilizada para construir uma indústria eficiente. A disputa por esse excedente gera intensos conflitos entre o agronegócio e o setor industrial. Essa tensão é projetada sobre todo o aparato produtivo e fratura a sociedade numa sucessão de crises duradouras.
A magnitude destas convulsões (1989, 2001) é, por sua vez, mais uma consequência das medidas fiscais e financeiras adotadas pelo Estado para gerir as crises. Esta intervenção reforça os desequilíbrios que suscita a disputa pela renda.
O Estado arbitra entre os diferentes grupos dominantes, com quatro instrumentos que acabam agravando os desequilíbrios. O primeiro mecanismo é a desvalorização, tradicionalmente aplicada para reforçar o rendimento dos exportadores, descontentes com a taxação da renda pelo Estado. Esta desvalorização da moeda alimenta o aumento dos preços sem melhorar a competitividade.
A própria dinâmica da inflação funciona como um segundo instrumento de intervenção, que consolidou um flagelo permanente. Os símbolos monetários que retiraram os zeros da denominação do peso já se perderam, consagrando efetivamente o funcionamento de uma economia bimonetária.
A inflação é elevada porque a economia sofre de uma recessão prolongada, que reduz os investimentos, deteriora a produtividade e contrai a oferta de produtos. Mas tornou-se um procedimento autônomo de apropriação da renda popular pelas grandes empresas. Foi incorporada como um hábito, como parte da gestão cotidiana dos negócios. Os capitalistas habituaram-se a remarcar os preços e a sustentar uma inflação inercial, que assegura sua rentabilidade, com o apoio do Estado.
O terceiro mecanismo de intervenção do Estado é o endividamento público, que nas últimas décadas assumiu um ritmo frenético. Esta falta de controle desenvolve-se em estrita correspondência com uma classe dominante que investe pouco. Depois de ter transformado o país no principal contratador e devedor de empréstimos privados, Mauricio Macri agravou esta tendência com o empréstimo concedido pelo FMI.
A gestão destes passivos envolve um capital financeiro influente que monopoliza os encargos. O pagamento dos juros destas dívidas impõe, por sua vez, uma hemorragia de recursos que inviabiliza a continuidade de qualquer modelo econômico. As reservas enfrentam periodicamente uma situação crítica, e este buraco torna impossível sustentar qualquer estabilidade da moeda.
A fuga de capitais é o quarto impulsionador da crise. Aumenta a descapitalização de um aparato produtivo que convive com a expatriação de 70% de seu PIB. Os grupos dominantes retêm fora do país porções significativas dos lucros que obtêm no circuito local. O endividamento público tende a financiar uma drenagem que asfixia as recuperações periódicas do nível de atividade.
Os mecanismos que surgiram para atenuar a disputa pela renda entre o agro e a indústria já não cumprem essa função. Depois de tantos anos de ação corrosiva, a desvalorização, a inflação, a dívida pública e a fuga de capitais tornaram-se instrumentos de autopropagação de uma crise incontrolável.
A receita liberal para reverter o retrocesso endêmico da Argentina resume-se à simples liquidação dos setores menos rentáveis. Este manual não esconde sua afinidade com os interesses minoritários da agroexportação e do capital financeiro. Procura demolir o essencial do aparato produtivo, enterrando com este rolo compressor dois terços da população.
A devastação da indústria atrasada e de grande parte do setor público é patrocinada a troco de nada. Os neoliberais supõem que, uma vez consumado o “industricídio” e a redução drástica do emprego estatal, os investimentos se multiplicarão e despontará um vertedouro.
Este experimento de engenharia social não foi implementado com êxito em nenhuma parte do mundo, e, para aplicá-lo em nosso país, sobram 20 milhões de argentinos. O que mais se pareceu com esse esquema foi o modelo Menem-Cavallo, que terminou com a explosão da convertibilidade após uma década de privatizações, abertura comercial e desregulamentação laboral. Esse esquema naufragou num cenário de depressão aguda, picos de desemprego e endividamento descontrolado. A direita não tem outro programa e volta sempre ao mesmo roteiro.
Suas variantes extremas propõem a dolarização, que levaria à hiperinflação, à expropriação dos depósitos e ao leilão do Fundo de Garantia da ANSES [Administração Nacional da Seguridade Social]. As vertentes mais convencionais fogem desta aventura e defendem a retomada do modelo falido de Macri, com elevação de tarifas, cortes nas aposentadorias, destruição de direitos laborais e privatização de empresas públicas.
Os economistas da direita divergem quanto ao ritmo a ser defendido para o próximo ajuste e à consequente celeridade da redução das retenções e da unificação da taxa de câmbio. Insistiram, sem sucesso, para que o modelo atual explodisse antes das eleições, através de uma mega desvalorização ou de uma corrida aos bancos. Buscam provocar o caos, a fim de induzir a aceitação de sofrimentos maiores (“doutrina do choque”).
Sugerem que tal catástrofe permitirá a gestação posterior de um paraíso econômico impulsionado pela exportação. Estas fantasias sucumbiram uma e outra vez e agora são confrontadas com o declínio internacional do neoliberalismo. Em todo o mundo, há uma guinada para políticas opostas de maior regulação estatal.
O neodesenvolvimentismo promove um remédio muito diferente para recompor a economia com políticas heterodoxas favoráveis à reindustrialização. Encoraja o programa aplicado em outros países afetados pela presença de rendas da agroexportação que dissuadem o investimento fabril. Favorece a canalização deste excedente para a atividade industrial, mas apresenta diferenças significativas em relação ao desenvolvimentismo clássico. Substitui a antiga proteção dos ramos mais vulneráveis por um plano de inserção nas cadeias globais de valor.
Durante o ciclo progressista da última década, esse modelo foi experimentado em vários países latino-americanos. O kirchnerismo recorreu a uma dessas variantes, aproveitando o cenário interno gerado pela crise de 2001 e o contexto internacional de grande valorização das matérias-primas.
Cristina Kirchner, atual vice-presidente da Argentina e representante do 'kirchnerismo'. (Foto: José Cruz | Agência Brasil)
Este roteiro sustentou a reativação e a recomposição do emprego, mas sem reverter os problemas estruturais da economia. Esta irresolução levou ao ressurgimento da inflação e do déficit fiscal, num quadro de grande hesitação para reindustrializar a economia, com maior captura da renda da soja.
As mesmas vacilações levaram a um controle cambial tardio e ineficaz e ao adiamento de reformas fiscais progressivas ou de mudanças num sistema financeiro avesso ao investimento. Mas o principal defeito deste modelo foi o continuado subsídio aos capitalistas, que utilizaram os recursos fornecidos pelo Estado para evadir capital. O neodesenvolvimentismo demonstrou grandes insuficiências para reverter o declínio econômico.
Nos últimos quatro anos, a economia continuou cambaleando. O neoliberalismo de Macri não persistiu, mas o neodesenvolvimentismo de Kirchner também não foi retomado. Prevaleceu uma gestão marcada pela ineficácia.
O oficialismo atribui sua inação às adversidades geradas pela pandemia, a seca e a guerra, omitindo que todos os países enfrentaram as mesmas adversidades com resultados diferentes. De fato, Fernández consolidou um modelo altamente ortodoxo, baseado em vários pilares regressivos.
Antes de tudo, convalidou a altíssima inflação como instrumento de ajuste. Os preços elevados afetaram primeiro os alimentos, devido à recusa a aumentar as retenções, e generalizaram-se posteriormente devido aos efeitos inflacionários do acordo com o FMI. Os capitalistas contaram com o aval oficial para continuar sua descontrolada remarcação de preços.
Com alguma reativação, recuperação do investimento e estabilização do emprego, o modelo de Fernández levou a um desmoronamento dos salários. Consolidou o emprego precário e o status de pobre do trabalhador formal, favorecendo os enormes lucros das empresas. Também sustentou a desigualdade, que se expandiu com o boom do turismo num oceano de despossuídos.
O esquema dos últimos três anos reforçou a primarização, a fim de pagar a dívida externa com o aumento das exportações de produtos básicos. A exploração não convencional de gás e petróleo, a extração desregulada do lítio e o descontrole das vias navegáveis inscrevem-se nesta submissão ao FMI.
Fernández administra o fim de seu mandato em meio a uma profunda crise, com grande pressão de desvalorização e um Banco Central sem divisas. Todos os dias improvisa algum malabarismo para chegar às eleições e evitar a megadesvalorização. Mas, nesta sobrevivência agonizante, tem impulsionado uma bomba de dívida interna, por meio do refinanciamento de obrigações a taxas insustentáveis. Em vez de obrigar os bancos a emprestar ao setor produtivo, consolida a bolha que engorda os financistas.
O próximo ajuste que está sendo preparado pelos poderosos inclui aumentos de tarifas, cortes salariais e contração do gasto social. Este atropelo supervisionado pelo FMI segue três trilhas possíveis. Por um lado, a variante feroz de Bullrich, que emite mensagens com os símbolos de 2001 (“blindagem”). Por outro, a vertente igualmente brutal, mas pactuada, que é conduzida por Larreta, através de um pacote de atropelos aprovado pelo Congresso. A terceira via é a continuidade da deterioração mascarada que implementa Massa.
Este contexto de ajuste iminente coexiste com a perspectiva de grandes negócios futuros, o que entusiasma o establishment. A Argentina ficou numa posição internacional privilegiada como grande fornecedora de matérias-primas. Por essa razão, o investimento estrangeiro aproxima-se dos máximos da última década e o “círculo vermelho” vetou todas as tentativas de uma corrida monetária (e/ou bancária) patrocinada pelo macrismo. As elites não querem uma eclosão que ameace os lucros florescentes previstos para os próximos anos.
Já vislumbram a reversão da seca e a proximidade de uma colheita com preços elevados. Apostam na duplicação das exportações de lítio e imaginam um grande superávit energético com o fornecimento do novo gasoduto. Também estão multiplicando os planos para converter o país num grande fornecedor de minérios e num abastecedor permanente de pescado, que está sendo depredado por navios que chegam de vários continentes.
A Argentina tornou-se um dos principais botins da disputa entre os Estados Unidos e a China. O FMI funciona como instrumento de Washington para obstruir a presença de Pequim, vetando investimentos em energia nuclear, portos, centrais eléctricas e tecnologia 5G. A China alcançou um protagonismo inédito e negocia a ampliação dos créditos em yuan para financiar suas exportações e sustentar sua posterior captura de recursos naturais.
O establishment local é incapaz de adotar uma posição comum face às exigências dos estadunidenses e às ofertas orientais. Sua dependência político-cultural do Norte choca com os atrativos negócios oferecidos pela China. Para resolver este dilema, é necessário gerir previamente o ajuste tempestuoso que o próximo governo implementará.
A Argentina continua lidando com uma crise de hegemonia não resolvida, que impede as classes dominantes de estabelecerem as alianças necessárias para uma estabilidade política duradoura.
Alfonsín não foi capaz de construir esse consenso mínimo para enfrentar a corrosão da economia. Menem conseguiu manter alguma coesão em torno da convertibilidade, mas sofreu uma erosão vertiginosa quando vieram à tona as inconsistências de seu modelo. Conseguiu introduzir o maior avanço da reestruturação neoliberal das últimas décadas, mas nunca se aproximou da estabilidade alcançada por seus pares do Chile, Peru ou Colômbia.
O kirchnerismo forjou outra modalidade de consenso e manteve uma liderança significativa até 2012. O reaparecimento da crise econômica recriou as tensões e a tênue hegemonia voltou a dissipar-se face a um novo adversário de direita. A supremacia forjada por Macri foi mais transitória e diluiu-se completamente em 2017. Por último, Fernández foi a antítese de qualquer hegemonia. Revelou uma grande incapacidade para lidar com seus inimigos políticos. Sua autoridade foi pulverizada após a pandemia.
Esta sucessão de fracassos reafirmou a instabilidade que anteriormente afetou as ditaduras e os governantes civis e militares. O desgoverno tem sido uma caraterística permanente das crises argentinas. Esta inconsistência corroeu as administrações das três formações políticas dominantes (radicais, peronistas e de direita). Nenhuma delas conseguiu satisfazer seus eleitores ou suas referências dos grupos dominantes.
Perante esta fragilidade, o poder econômico optou por reforçar sua influência sobre as burocracias não eleitas do Estado. Com este patrocínio, o poder judiciário aumentou sua atuação através de vetos, cautelares, condicionamento de candidatos e supervisão de eleições. Perseguiu opositores com uma virulência inusitada e transformou o Tribunal num poder paralelo que define sua própria agenda e gere seus próprios negócios.
A mesma centralidade foi alcançada pelos meios de comunicação, que detêm um poder maior e mais relevante do que outros atores da política. Seu deslocamento dos partidos gera grandes desequilíbrios. A imprensa tende a impulsionar escândalos, a fim de apoiar os personagens apadrinhados em detrimento das figuras em desgraça. Mas, através dessa manipulação, prejudica a gestão dos assuntos públicos e deteriora o leme do Estado.
O mesmo tripé do poder econômico, judiciário e midiático tem sido o artífice, na América Latina, do lawfare contra os expoentes do ciclo progressista. Na Argentina, esse bombardeio aumentou a instabilidade. A elite dos capitalistas, juízes e comunicadores que controla o poder real socavou a autoridade dos governadores, ministros e presidentes, potencializando a desordem do país.
A Argentina distingue-se também pela ausência (ou debilidade) do poder militar, que mantém sua influência tradicional no resto da região. Após o fracasso da ditadura, da derrota das Malvinas e da eliminação dos Carapintadas, o velho protagonismo do exército foi anulado. Este deslocamento reduziu o uso da coerção para contrapor a vulnerabilidade política. Esta carência priva a classe capitalista de um importante instrumento de dominação. As forças armadas não exercem o poder explícito, ou o papel subjacente, que mantêm na Colômbia, Brasil, Chile ou no Peru.
No espectro partidário, verificou-se uma grande mutação do radicalismo, que não conseguiu sobreviver em seu formato tradicional ao declínio de Alfonsín e à catástrofe de De la Rúa. Persiste como uma grande estrutura de governadores, prefeitos e legisladores, mas sem qualquer vestígio de progressismo.
A UCR [União Cívica Radical] foi subordinada ao macrismo, que conseguiu forjar a primeira formação de direita a ganhar eleições. Esta preeminência mantém-se após o fracasso de Macri. A centralidade da disputa entre Bullrich e Larreta nas primárias das PASO [Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias] confirma este protagonismo do PRO [Proposta Republicana] frente ao radicalismo em declínio.
Ambas as formações convergem na prioridade de esmagar o protesto social para instaurar um regime repressivo. O que aconteceu em Jujuy antecipa um futuro governo desta coalizão em qualquer de suas versões. Morales introduziu uma reforma constitucional que reduz direitos, suprime eleições intermediárias e facilita a corrupção de sua família, com o objetivo de expropriar os habitantes originários e entregar o lítio às grandes empresas.
Para consumar este atropelo, facilitou os disparos nos olhos dos manifestantes, promove embargos milionários contra os detidos, promove condenações criminais sem precedentes e apoia a incursão policial na Universidade. Todos os membros do Juntos por el Cambio espalham as mesmas mentiras para encobrir o reaparecimento de paus, balas, infiltrados e carros sem identificação nas manifestações.
As únicas divergências neste bloco giram em torno da intensidade da agressão contra o povo, numa presidência que anteveem muito próxima. Bullrich é a favor de uma investida virulenta, com grande risco de provocar uma rebelião popular. Larreta defende uma agressão mais pactuada, que poderia ser ineficaz para as ambições das classes dominantes.
A rivalidade interna entre ambos os candidatos torna estas discrepâncias transparentes. O establishment comemora a brutalidade de Bullrich, mas desconfia de sua exequibilidade. Aprova todas as suas bravatas e perdoas suas divagações econômicas, mas também valoriza a capacidade de Larreta para alinhar forças díspares num projeto regressivo a longo prazo.
Esta direita convencional conseguiu uma base eleitoral importante, alimentada pela decepção com o atual governo, mas não tem o apoio nas ruas de anos anteriores. Não há panelaços, nem marchas como na época de Nisman ou durante a pandemia. O fracasso de Macri é recente e afeta a credibilidade do PRO. Além disso, a direita substituiu sua demagogia habitual por confissões de ajuste, que reavivam os receios da população contra tais ataques.
As variantes convencionais deste espectro enfrentam a nova rivalidade de seus concorrentes da extrema-direita. Ao contrário de 2001, esta vertente emerge como um canal de captação do descontentamento com o sistema político. Os bolsonaristas da era Macri (como Olmedo) já não são marginais. Agora competem por espaço com o conservadorismo tradicional.
Milei foi fabricado pelos meios de comunicação social e chegou à política sem qualquer trajetória anterior. Foi instalado para reforçar uma agenda de agressão e facilitou essa função com crenças ridículas. Seus delírios incluem a expetativa de receber salários elevados em moeda estrangeira, extinguir o déficit fiscal incendiando o Banco Central e ultrapassar a decadência nacional erradicando a “casta política” (de que ele agora faz parte).
Javier Milei, vencedor das primárias presidenciais na Argentina, se coloca como forte candidato à Casa Rosada. (Foto: Reprodução | Facebook de Javier Milei)
Os libertários foram promovidos para reintroduzir um clima repressivo e encorajar uma demagogia punitiva, que inclui o porte livre de armas. Seus expoentes não escondem expressões homofóbicas, elitistas ou racistas, nem surtos como comercializar órgãos ou menores de idade. A tentativa fracassada de assassinato de Cristina demonstrou também que essa extrema-direita não limita suas ações a delírios verbais.
A centralidade alcançada por Milei está ligada à influência da mesma corrente na Europa, Estados Unidos e América Latina. Não se trata de um fenômeno exclusivamente local, mas gera adversidades paradoxais para seus promotores. É verdade que facilita a popularização das falácias patrocinadas pelos poderosos, mas, ao mesmo tempo, fraturam a coalizão forjada pelo “círculo vermelho” para assegurar um próximo governo.
Nas eleições intermediárias de 2021, o Juntos por el Cambio demonstrou que poderia ganhar a presidência no primeiro turno. A extrema direita irrompeu para reforçar a direção reacionária, mas criou um monstro ingovernável que afeta os planos do establishment.
Uma eleição competitiva dos libertários poderia corroer a supremacia do PRO e da UCR e introduzir uma cunha adversa no bloco de direita. A campanha maluca contra a “casta política” também reduz o campo de negociação do próprio Milei, que improvisou o aluguel de candidatos nas províncias. Por enquanto, o poder midiático arrefece o apoio à sua criatura fascistóide. O futuro deste Frankenstein é uma grande incógnita.
Uma singularidade da Argentina é a persistência do peronismo como estrutura política dominante. Mantém uma grande influência como cultura, identidade, força eleitoral e rede de poder. Conseguiu recuperar-se da derrota de Alfonsín e da desilusão com Menem com uma nova mutação interna, que confirmou a plasticidade de suas cinco versões.
A vertente clássica (1945-55) inspirou-se no nacionalismo militar e apoiou a burguesia industrial, em conflito com o capital estrangeiro e com as elites locais. Implementou melhorias sociais inéditas para a região e forjou um Estado de Bem-estar próximo da social-democracia europeia. Com esta base, conseguiu um apoio duradouro na classe trabalhadora organizada.
O segundo peronismo foi totalmente diferente (1973-76). Foi marcado pela violenta ofensiva dos setores reacionários (López Rega) contra as correntes radicalizadas (PJ [Partido Justicialista], Montoneros). A direita arremeteu aos tiros contra a vasta rede de militantes forjada durante a resistência à proscrição de Perón. Atuou com fúria contrarrevolucionária no contexto insurgente dos anos 70. A presença destes dois pólos extremos no mesmo movimento foi uma particularidade deste peronismo.
O terceiro peronismo foi neoliberal (1989-99). Introduziu as políticas de privatização, abertura comercial e flexibilização do trabalho, que os thatcheristas implementavam em outras latitudes. Não foi o único convertido desse período (Cardoso no Brasil, o PRI no México), mas nenhum outro incorporou uma deserção tão despudorada do velho nacionalismo. Essa mesma mutação reacionária verificou-se em outros casos, como o MNR na Bolívia ou o APRA no Peru. Mas estas formações abandonaram definitivamente qualquer ligação com sua base popular e enfrentaram a dissolução ou o declínio.
Os três peronismos do século passado ilustram as múltiplas variedades que este movimento assumiu. Protagonizou grandes crises e surpreendentes reconstituições. De cada colapso emergiu um novo projeto adaptado a seu tempo.
O kirchnerismo liderou um quarto peronismo de caráter progressista. Retomou as melhorias do primeiro período com outros fundamentos. O velho paternalismo conservador foi substituído por novos ideários pós-ditatoriais de participação cidadã. A confrontação interna com a direita não foi dramática e foi resolvida com um distanciamento do duhaldismo.
Kirchner reconstruiu o aparato estatal demolido pelo colapso de 2001. Restabeleceu o funcionamento da estrutura que garante os privilégios das classes dominantes. Mas consumou esta reconstituição ampliando a assistência aos empobrecidos, estendendo os direitos democráticos e facilitando a recuperação do nível de vida.
Cristina introduziu uma marca mais combativa, formada na confrontação com os agro-sojeiros, os meios de comunicação e os fundos abutres. Esta polarização quebrou o equilíbrio que Néstor tinha mantido com todos os grupos de poder. Seu quarto peronismo situou-se na centro-esquerda regional (ao lado de Lula, Correa e Tabaré), mas estabeleceu laços com as vertentes radicais de Chávez e Evo. Não compartilhava o endeusamento institucional que prevalecia no Brasil ou no Uruguai.
O quinto peronismo de Fernández incorporou um fracasso sem precedentes. O justicialismo sempre incluiu experiências contraditórias, mas nunca teve uma vertente tão inútil de simples convalidação do status quo. Após o primeiro teste de conflitos (Vicentin), a direita torceu-lhe o braço e Alberto acumulou um recorde de derrotas. Nem sequer pôde defender sua política de proteção da saúde e, quando a inflação começou a pulverizar os salários, optou pela submissão ao FMI.
O presidente argentino Alberto Fernández com o presidente Lula. (Foto: Reprodução | Casa Rosada)
Esta impotência contrastou não só com Perón, mas também com Néstor e Cristina. Não houve o menor indício de disputa com o agronegócio (2010), nem iniciativas comparáveis à nacionalização do petróleo (YPF) e dos fundos de pensões (AFJP) ou à lei dos meios de comunicação. O fracasso de Fernández coloca-o no mesmo compartimento de outros líderes da nova onda progressista (como Boric no Chile ou Castillo no Peru), que desiludiram seus seguidores.
A frustrada experiência atual gera três cenários possíveis para o peronismo. A primeira possibilidade é uma reconstituição da direita, com a marca de Schiaretti e do PJ cordobês aliado ao Cambiemos. Este é o mesmo perfil que promove o líder do justicialismo de Jujuy. Com seu manejo do bloco legislativo e do principal jornal da província, este personagem apoiou a reforma de Morales e a repressão dos manifestantes.
Outros governadores se adaptariam ao novo mapa do interior e do Senado, que poderia emergir de uma nova preeminência do PRO e da UCR. Esta orientação estaria em sintonia com o ataque de Tolosa Paz aos piqueteiros e com Berni disputando a mão pesada da polícia com Bullrich.
Massa enquadra-se nesta perspectiva devido a seus categóricos antecedentes direitistas. Sempre foi um homem da embaixada estadunidense, com fortes simpatias pelo trumpismo republicano. Foi por isso que apoiou Guaidó e acompanhou Macri. Manteve um silêncio prudente perante a repressão em Jujuy devido aos laços de patronagem com o vice-governador Haquim.
O atual candidato do oficialismo nunca compartilhou o temperamento timorato de Alberto Fernández. Por essa razão, pode emergir como um inimigo efetivo do kirchnerismo, se conseguir chegar à Casa Rosada. Nesse caso, poderia repetir a trajetória traiçoeira de Lenín Moreno no Equador.
Massa também poderia encarnar uma nova versão do menemismo. O establishment prevê esta perspectiva e o percebe como um membro confiável de seu próprio círculo. Após um ano à frente do Ministério da Economia, reforçou o ajuste, com cortes nas despesas primárias e nas aposentadorias e planos sociais.
Um cenário muito diferente poderia surgir para o peronismo se o oficialismo sofresse uma grande derrota eleitoral que fraturasse a Frente de Todos. Nesse caso, o justicialismo entraria numa fase de desintegração, semelhante à que ocorreu após a vitória de Alfonsín ou o colapso do menemismo.
Há uma terceira possibilidade de preservação e eventual reconstituição do PJ sob o domínio cristinista. Cristina Kirchner conseguiu manter sua preeminência através de uma diferenciação inteligente da figura demolida de Alberto. Soube preservar esse protagonismo com o argumento da proscrição, que foi, no máximo, uma ameaça e nunca uma realidade. Se tal proibição tivesse efetivamente existido, teria sido apropriado contestar as eleições (como na época da Resistencia), com apelos ao voto em branco.
Cristina não se apresentou, depois de avaliar todas as desvantagens de uma derrota ou de um triunfo sem a possibilidade de formar um governo sólido. Diante desta adversidade, optou por apoiar um plano futuro com Kicilloff, Wado e Máximo. Mas sua renúncia também corrói a viabilidade desse projeto. As batalhas que são adiadas podem se transformar em derrotas duradouras. Para evitar esse risco, Lula apresentou novamente sua candidatura contra Jair Bolsonaro.
O pano de fundo do problema é que Cristina não tem um plano econômico alternativo ao de Massa. Por isso, limita-se a convalidar silenciosamente o ajuste com elogios ao capitalismo. Seu apelo para renegociar a dívida externa em outros termos já fracassou durante a administração de Alberto. Sua mensagem de um passado promissor que reapareceria no futuro também carece de credibilidade. Se esse projeto fosse viável, teria começado a implementá-lo durante o atual governo. Atualmente, o peronismo não oferece uma saída crível para a crise.
A relação social de forças é determinante no cenário argentino pela enorme centralidade das lutas populares. A omissão desta incidência torna impossível a compreensão da dinâmica atual. O principal movimento de trabalhadores do continente está localizado em nosso país. Sua disposição de lutar foi verificada nas 40 greves gerais realizadas desde o fim da ditadura. A adesão majoritária a estas paralizações permanece, como um dado inusual em outras latitudes. A sindicalização também está no topo das médias internacionais.
A Argentina tem algumas semelhanças com a França em relação à influência do sindicalismo e ao seu poder nas ruas. Este protagonismo dos trabalhadores incide na região de modo semelhante ao papel desempenhado pelos assalariados franceses na Europa.
Mas a principal novidade das últimas décadas foi a consolidação dos movimentos sociais de trabalhadores informais e desempregados. Estas organizações resultam, em grande medida, da experiência sindical anterior. Sua emergência foi consumada durante a crise de 2001, quando os trabalhadores privados de emprego foram levados a bloquear as estradas para exigir seus direitos. Recorreram a esta modalidade por uma simples necessidade de subsistência.
As lutas populares possuem grande centralidade no contexto social do país platino. (Foto: Alicia Nijdam | Creative Commons)
A luta destes movimentos permitiu sustentar os auxílios sociais do Estado, que as classes dominantes concediam frente ao medo de uma grande revolta. Estes planos tornaram-se indispensáveis para a reprodução do tecido social. O que inicialmente parecia ser uma resposta provisória ao colapso econômico transformou-se numa caraterística estrutural da vida argentina.
As novas formas de resistência estão ligadas à anterior belicosidade da classe operária. Facilitaram o retorno do progressismo ao governo e desempenham um papel ativo na organização dos despossuídos. Deram origem a uma rede de solidariedade conectada ao desenvolvimento de muitas localidades.
O protagonismo de rua do movimento piqueteiro assemelha-o ao seu homólogo indigenista do Equador. São formações que vêm de tradições muito diferentes e organizam conglomerados socioculturais igualmente divergentes. Mas estão relacionadas pelo impacto político de suas ações.
No Equador, derrubaram recentemente o governo neoliberal de Lasso, determinando o fim dessa administração e sua provável substituição pelo correísmo. Uma influência equivalente foi demonstrada pela organização piqueteira, ao precipitar o fim de Duhalde e a consequente ascensão do kirchnerismo. Nas últimas duas décadas, mantiveram uma presença marcante como expoentes visíveis do mal-estar popular.
A Argentina também conta com uma enorme reserva de lutadores pelos direitos humanos. A consciência democrática que prevalece no país é evidenciada anualmente nas grandes marchas de 24 de março. A participação massiva nesta comemoração ilustra de que forma quatro gerações sucessivas mantiveram viva a memória.
A validade das conquistas democráticas é corroborada pelos 300 julgamentos por crimes contra a humanidade, com 1115 condenações. Os genocidas continuam na prisão e todas as tentativas de libertá-los falharam. A proposta “dois por um” foi rejeitada de forma contundente e o crime de Maldonado desencadeou uma grande comoção. Após 47 anos de busca, um novo neto foi recuperado na incansável batalha pela identidade. Outras conquistas, como as leis do aborto e da igualdade de gênero, inserem-se neste quadro.
É importante destacar estes avanços – que contrastam com a degradação econômica e social – para evitar avaliações unilaterais dos últimos 40 anos. Caracterizar este período como um mero “fracasso da democracia” é uma simplificação. No meio de terríveis retrocessos no nível de vida, mantiveram-se êxitos democráticos consideráveis.
Em certa medida, estas melhorias estão assentadas no legado duradouro da educação pública. A escolarização em massa em instituições seculares forjou um ideário de convivência e progresso, que não foi substituído pelo modelo chileno de privatização. Apesar do colapso dramático do ensino público, a direita não conseguiu generalizar as crenças elitistas, nem conseguiu anular a vitalidade do pensamento crítico nas universidades.
A força preservada pelos movimentos sindicais, sociais e democráticos é o principal ativo do país e o pilar de uma resolução popular da crise. É por isso que a direita tem como prioridade o enfraquecimento dessa resistência. Seus candidatos têm sido brutalmente sinceros em sua pretensão de destruir as organizações populares. Têm em mente a rebelião de 2001 e o grave revés sofrido por Macri quando tentou reformar as aposentadorias. A reação a partir de baixo contra o próximo ajuste é o grande pesadelo dos estrategistas do PRO.
Este poder popular que enfurece os inimigos é muitas vezes ignorado no próprio campo. A tese da “passividade”, “neutralização” ou “cooptação” dos lutadores exemplifica essa desqualificação. Depois de muitas batalhas, prevaleceu na prática uma dinâmica contraditória de concessões para contrapor os conflitos.
É igualmente verdade que, nos últimos três anos, a decepção gerada por Fernández só provocou protestos muito limitados. Houve triunfos de muitos sindicatos e ações sindicais relevantes, mas a resposta generalizada dos oprimidos foi contida. Por isso, ao contrário de 2001, a classe dominante não enfrenta as próximas eleições com temor (ou desorientação). Pelo contrário, tem uma grande confiança nos principais candidatos à presidência.
A Argentina não participou na recente onda de protestos que conteve a restauração conservadora na região (2019-2022). Essas revoltas forçaram a saída precipitada de líderes de direita na Bolívia, Chile, Peru, Honduras e Colômbia. No nosso país, o descontentamento social não deu origem a revoltas equivalentes, embora tenha dado lugar ao mesmo tipo de vitórias progressistas nas urnas.
Sob o governo de Fernández, a reação popular foi menor do que o habitual, face ao terrível ajuste em curso. A burocracia da CGT [Confederação Geral do Trabalho] conseguiu manter a desmobilização das bases. O descontentamento foi parcialmente canalizado por marchas e acampamentos de piqueteiros, que demonstraram grande coragem perante a diabolização orquestrada pelos grandes meios de comunicação. Esta mobilização teve o mérito de contrapor a amnésia das tradições populares promovida pela direita. Facilitou também a persistência de níveis significativos de militância e politização.
São várias as razões que explicam a resistência limitada dos últimos anos. A eficácia dos planos sociais, que funcionam como uma cobertura estendida para atenuar as irrupções sociais, desempenhou um papel importante. Em certos setores da população, existe também uma certa resignação diante da inflação, na medida em que coexiste com a continuidade do emprego. A crise atual é profunda, mas não é uma repetição de 2001. A permanência dos postos de trabalho informais contrapesa o mal-estar, e a deterioração da renda é vista como um mal menor face ao drama do desemprego. Por outro lado, a impossibilidade de poupar induz a classe média a consumir ou a endividar-se para evitar as adversidades.
A despeito de grupos políticos distintos estarem à frente da Casa Rosada, o país não parece achar o caminho de superar o atual período de crise prolongada. (Foto: Dione Film | Unsplash)
Mas, além destas circunstâncias, a grande mobilização em Jujuy ilustra o tipo de resposta que o próximo governo poderá enfrentar. Morales conseguiu dividir e amedrontar o movimento popular após seu golpe contra Milagro Salas. Mas, depois que venceu as eleições, sentiu-se encorajado e precipitou uma reação surpresa vinda de baixo.
A resposta veio dos professores, foi seguida por outros sindicatos e juntou ambientalistas e comunidades indígenas. O “malón da paz” que chegou a Buenos Aires ilustra a continuidade dessa batalha. Além disso, as melhoras salariais conseguidas pelos professores demonstraram que a luta gera resultados. Jujuy foi um provável teste do que está para vir.
Observando as últimas décadas retrospectivamente, verifica-se que a Argentina continua enfrentando um impasse não resolvido nas relações sociais de força. Este conceito foi utilizado nos anos 1960 e 1970 por vários intelectuais para conceitualizar o cenário criado pelo peso da classe operária e dos sindicatos. A mesma noção voltou a ser utilizada em 2001, após uma rebelião que conteve o ajuste neoliberal. Esse equilíbrio persiste até hoje.
A dinâmica dos impasses reciclados é o pano de fundo de um contexto que as classes dominantes não conseguem alterar. A permanência deste equilíbrio alimenta as esperanças de ultrapassar a crise com um projeto popular.
As duas forças mais comprometidas com a luta social e democrática são o kirchnerismo crítico e a esquerda. Esta intervenção é muito diferente em termos de persistência ou de consequências, mas ambos os setores reúnem o embrião militante necessário para impulsionar uma direção alternativa.
O kirchnerismo crítico inclui um grupo heterogêneo de formações integradas na Frente de Todos, mas com forte questionamento das políticas dos últimos quatro anos. O ponto de inflexão com o oficialismo foi o acordo com o FMI. Há muitas zonas cinzentas no meio, mas a posição sobre o acordo distingue os dois segmentos.
A resignação predomina no kirchnerismo convencional. Seus teóricos justificam esta atitude com a “adversidade conjuntural das relações de força”. Mas esquecem que esse equilíbrio não é um dado invariável, mas um efeito da ação política. Esta prática consolida ou inverte cenários desfavoráveis.
Em outras ocasiões, justificam a passividade alertando para o perigo maior da direita. Mas ignoram que essa ameaça é sempre recriada pelos poderosos para assegurar sua dominação. Muitas vezes, patrocinam inimigos mais brutais, para tornar aceitável o carrasco do dia. A aceitação desta chantagem passa atualmente pela convalidação de Massa contra Larreta.
O kirchnerismo crítico rejeita a moldagem ao cenário atual, mas postula a conveniência de uma batalha dentro do peronismo. Aceita o remédio amargo de votar em Massa nas eleições presidenciais, depois de ter forjado seu próprio espaço em torno de Grabois. Com este agrupamento anterior, espera condicionar o candidato indesejado do oficialismo, caso aterrisse na Casa Rosada.
Mas convém lembrar que Alberto foi muito mais condicionado pela vice-presidência de Cristina, e essa barreira não impediu o desastre de seu governo. Também é claro que a possibilidade de influenciar um direitista determinado como Massa será muito menor do que qualquer pressão sobre o vacilante Alberto.
O projeto de forjar uma vertente radicalizada no peronismo não é novidade. Tem o antecedente traumático da relação de Perón com o PJ. Uma revisão dessa experiência nos permitiria lembrar quão frustrante tem sido a tentativa de criar um pólo alternativo dentro do verticalizado PJ.
A esquerda enfrenta outro tipo de disjuntiva. Uma formação socialista se consolidou em torno da FIT [Frente de Esquerda e dos Trabalhadores], com uma presença eleitoral minoritária, mas ineditamente visível. Ela se distingue pela combatividade que demonstrou mais uma vez em Jujuy. Em vez de enviar mensagens formais de apoio, seus líderes colocaram seus corpos nos protestos.
No difícil cenário que se avizinha, a presença de um número maior de parlamentares de esquerda seria muito positiva, para reforçar a resistência no Congresso e nas ruas. As propostas dessa formação também são necessárias para enfrentar a tibieza do progressismo. Um projeto melhor só surgirá com a exposição de críticas contundentes à inconsequência desse espaço.
Mas ninguém vota na FIT com a expectativa de facilitar sua chegada próxima, futura ou distante ao governo. Essa descrença limita as perspectivas dessa força. A própria FIT não se apresenta como uma opção de governo. Carece de alguma estratégia para atingir esse objetivo e não vai às urnas para sair vitoriosa. Sua única perspectiva está ligada à irrupção de um processo revolucionário, o que não se verificou nas últimas décadas.
A avaliação desta última lacuna é omitida como qualquer hipótese de ganhar o governo para disputar o poder num longo período de transição. Essa política exigiria o reconhecimento da diferença qualitativa que separa a luta pela supremacia num governo, num regime político, num Estado e numa sociedade. A diferenciação destas instâncias permitiria conceber rumos socialistas que a FIT não considera.
A avaliação destas vias conduziria também à promoção de grandes acordos eleitorais para a conquista de prefeituras ou províncias. A procura destes objetivos obrigaria a uma reavaliação das alianças rejeitadas com o kirchnerismo crítico.
Mas nenhum destes debates faz parte da agenda que opõe dois setores da FIT nas PASO. As divergências que separam as duas listas são dificilmente compreensíveis para muitos apoiadores destas forças. Mais surpreendente ainda é a apresentação de outras listas minoritárias com a mesma força fora da frente.
Na intensa vida política do nosso país, reiniciou-se o debate teórico-político sobre a crise prolongada da Argentina. Se estas elaborações derem origem a um novo horizonte no kirchnerismo crítico e na esquerda, o projeto popular começará a despontar e a despertar o entusiasmo que essa construção requer.